Reflexão

As travessias da vida

Renovar-se faz parte do processo de viver.

Quando estamos sofrendo não pensamos na renovação que poderá vir a partir disso. Mergulhamos em nosso lado sombrio, sentimos a dor, a perda; ou então, a dor da perda. Este contato com a nossa escuridão se faz necessário para que possamos nos transformar, mas isso só acontecerá se assim quisermos. Demandará paciência, persistência e valorização de si mesmo. 

Nenhuma transformação acontece sem que haja contato com o desconforto, sem que haja uma caminhada com presença, inteireza e disposição. Não é simples e também não é uma trajetória em linha reta que segue apenas para frente. Ora ou outra aparecem as curvas, descidas, subidas. Às vezes é preciso parar, retroceder, recobrar o fôlego e buscar seguir adiante. É preciso confiar no que não se vê. 

Photo by Alessio Lin on Unsplash

O mundo racional da sociedade contemporânea nos tem afastado do simbólico, da subjetividade e complexidade que residem em nossa alma. Tem se tornado cada vez mais difícil olhar para além do óbvio. Se enaltece a matéria, aquilo que é palpável, mensurável, visto (ou exibido). O consumismo se tornou ferramenta de prazer, maneira rápida e vaga para aplacar o desconforto por já não mais saberem o que significa ser.

Estamos nos distanciando de nossa capacidade de lembrar do que sonhamos, do viver nossa criatividade, intuição, reconhecer nossos movimentos, ritmos, sentir os compassos. Os insights se tornam cada vez mais raros e consequentemente as mudanças de níveis de consciência que os acompanham também.

Me deparo com pessoas vivendo em vazios existenciais, fruto da perda (ou da dificuldade) em enxergar além do que se é cultuado no mundo moderno, como corpos perfeitos, números astronômicos, aplausos infindáveis. E o que é esse vazio? 

Não sei. Cada um tem a sua luta a ser encarada. Mas no geral, pode ser que encontremos algumas respostas (ou mais perguntas) por meio de um tema que se relaciona com a busca do sentido de viver.

Por que você vive? Para que você vive?

Exercício complexo, mas que nos promove chance de ampliar visões e diversificar perspectivas, nos dando coragem de viver e, inclusive, de sofrer.  É assim que entendemos sobre a nossa capacidade para lidar com os sofrimentos, suportando os pesos e encontrando contrapesos. Afinal, quem disse que se questionar é leve e divertido? 

Como na natureza, onde todas as formas de vida se conectam e se autorregulam, é fundamental que em algum momento possamos enxergar e cuidar também de nossa natureza interior. Para isso se faz necessário dedicar tempo à observação de si mesmo.

Pense sobre seu estado interior. Aonde você está vivendo?  Labirintos enormes, corridas sem fim, guerras apocalípticas, testes impossíveis? 

Perceba. 

O que é preciso compreender? O que você está querendo transmitir para si mesmo? Aqui me refiro à comunicação inconsciente-consciente.

Um dia desses li sobre a pesquisa que Shige Oishi e Erin Westgate, psicólogos da Universidade de Virgínia e Flórida, fizeram sobre o quanto uma vida psicologicamente rica é mais importante do que uma vida feliz ou com significado. O estudo não diz que uma vida psicologicamente rica opera apartada da felicidade e significado, mas que para que isso aconteça é inevitável vivências e emoções desconfortáveis, normalmente presentes em situações de mudanças inesperadas e acontecimentos dolorosos. 

Cabe citar aqui exemplos como mudança para um novo país, mudança de carreira, a descoberta de uma doença grave, a morte de uma pessoa que amamos, além de vivências traumáticas. 

Photo by Nathan Riley on Unsplash

De fato, quando lidamos com a ferida, evoluímos. A ferida não vai desaparecer, mas aprenderemos a conviver com ela de maneira mais integrada a quem somos. Há ganhos nisso, acreditem.

Assim, depois do tempo de cada um, é possível olhar para os aprendizados, transformações e consequente enriquecimento psíquico.

Vale ressaltar que nem sempre todos conseguimos enriquecer psicologicamente através das dificuldades. É claro que sobreviver a eventos perturbadores tem o seu valor (e muito!), mas é preciso considerar os impactos psicológicos causados por traumas não elaborados, bem como a particularidade de cada indivíduo em sua estrutura de desenvolvimento psíquico, sua geografia, cultura, estrutura familiar, rede de apoio e/ou acesso a cuidados com a saúde mental para a compreensão de como se deu o contato com o seu sofrimento. 

Muitas vezes é a partir da psicoterapia que a pessoa agredida, subestimada, negligenciada ou abusada consegue acessar sua força, compreender a própria história e reconhecer onde reside sua resiliência. 

É por isso que digo que não há fórmulas secretas ou um guia prático com os 10 passos infalíveis para uma vida xis (qualquer que seja a busca). 

A meu ver, uma vida psicologicamente rica trata-se de mais uma dimensão a ser considerada pelo ponto de vista das mudanças que são fundamentais vivermos, sendo o sentido desse viver e o contato com a nossa subjetividade tão importantes quanto.

Acredito que a travessia é mais importante do que a chegada, pois nunca saberemos qual será o resultado de nossos esforços. Não temos como controlar o futuro e ter certeza do que alcançaremos com as nossas escolhas. Se nos apegarmos ao título, às aprovações sociais, à validação familiar ou a qualquer motivação que não faça sentido a quem somos, perderemos a oportunidade de nos fazermos presentes (e conscientes) na construção de nossa história. É como caminhar até um local e ao chegar no destino não saber como foi que chegou ali e nem o porquê. Perderemos o contato dos nossos pés com a terra que estamos pisando; perderemos o contato com a nossa alma. Viveremos então uma vida desintegrada do nosso ser, o que abre espaço para o surgimento de psicopatologias. E o adoecimento psicológico não é o fim do mundo, pois não deixa de ser uma janela aberta para o psique. É possível assim entender o seu funcionamento psíquico, se aproximar de reflexões e adotar novas atitudes.

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é na travessia.

Guimarães Rosa
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Portando, ao longo de nossos percursos, é importante disposição para desapegar-se do que outrora havíamos planejado e atenção (e respeito) ao ritmo lento, receptivo e natural da vida, que nos convidará à reconstrução e construção de experiências.

Isso não significa que não esbarraremos em dúvidas, medos, inseguranças e ansiedades. Existem momentos em que vamos precisar de mais tempo para agir ou de mais autocompaixão quando o desespero surgir. 

Conte com as pessoas para seguir adiante. Quando nada vai bem há uma tendência ao isolamento, mas é importante buscar ajuda através do cultivo dos relacionamentos, sejam eles os amigos ou familiares. É na rede de apoio que conseguimos ganhar força para lidar com as dificuldades. 

Resumindo: que você seja capaz de aprender a navegar em suas ondas, deixar para trás aquilo que precisa ficar e levar consigo o que é essencial para seguir em frente desvendando um novo ciclo quando este se apresentar.

Photo by Tomás M on Unsplash

Precisamos estar dispostos a nos livrar da vida que planejamos para podermos viver a vida que nos espera. A pele velha tem que cair para que uma nova possa nascer.

Joseph Campbell

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